O retorno à ética fundamental
André Marcelo Machado Soares
Resumo
A racionalidade moderna se apresenta sob vários aspectos e isto conduz, necessariamente, a impossibilidade de afirmar a existência de um único modelo de racionalidade. Por isso, o esforço de sistematizar análises de condutas, tendo como base uma racionalidade normativa universal, se choca com as manifestações próprias do espírito humano, inserido em situações socioculturais determinados. O relativismo, que também afeta os códigos deontológicos profissionais, define o cenário atual apesar da busca pelo consenso.
Palavras-chave: Ética Fundamental; Códigos deontológicos; Lei natural; Gramática moral
Abstract
Modern rationality presents itself under several aspects and this necessarily leads to the impossibility of affirming the existence of a single model of rationality. Therefore, the effort to systematize analyzes of conduct, based on a universal normative rationality, collides with the manifestations of the human spirit, inserted in certain sociocultural situations. Relativism, which also affects professional deontological codes, defines the current scenario despite the search for consensus.
Keywords: Fundamental Ethics; Deontological codes; Natural Law; Moral Grammar
1 – Introdução
Podemos evitar ou até não nos importar com determinados temas, como a influência das práticas religiosas nas culturas e a existência de vida inteligente em outros planetas, por exemplo. No entanto, seguramente não é possível ignorar por completo os debates éticos em torno da dificuldade de estabelecer critérios racionais universalmente válidos para nortear condutas. A chamada crise moral contemporânea nasce justamente desta conjuntura (SOARES, 2009, p. 11-28)
Se, por um lado, o relativismo se tornou um problema para a reflexão ética no mundo globalizado, por outro, nem mesmo a globalização se mostrou capaz de impedir a reação de grupos que, a partir de convicções morais desconectadas da realidade, pretendiam impor, inclusive pela força, seus ideais claramente fundamentalistas. É fato que a globalização trouxe conquistas novas e importantes, mas é igualmente verdadeiro que, em muitos aspectos, ela não nos faz mais do que vizinhos, sem quaisquer vínculos (BENTO XVI, 2009, n. 19). A pretensão de descobrir por meio da razão uma moralidade que unisse a todos e proporcionasse a paz perpétua se mostrou ingênua.
A crescente desconfiança na razão, que não foi capaz de garantir os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade para todos (ADORNO, 1975, p. 326-332), fez surgir a pós-modernidade e com ela uma nova perspectiva: a Ética, que desde os gregos pretendia fundamentar universalmente na razão comportamentos e valores, foi substituída por uma variedade de concepções individuais a respeito do bem, do dever, da virtude, do caráter e da vida boa.
No âmbito profissional, para escapar do subjetivismo dos indivíduos com suas crenças morais, a alternativa foi circunscrever as discussões sobre as condutas éticas aos critérios estabelecidos pelos códigos deontológicos. Com isso, ocorreu uma juridicização das questões éticas. Apesar de haver uma preocupação com a intenção do agente, o fato é que tal preocupação se limita aos aspectos meramente legais. Afinal, a deontologia profissional encontra-se no âmbito da legalidade, porque, independentemente da vontade do indivíduo, regula o ato profissional ao instituir as condutas admissíveis e as reprováveis.
Diante de tais constatações, cabe uma pergunta: o que explica a passagem do plano ético para o plano deontológico? Para responder a esta pergunta, é imprescindível recordar como a Ética, ao longo da história, foi deixando de ser fundamental e tornou-se secundária em relação ao âmbito jurídico.
2 – Uma síntese histórica
Apesar da contribuição dos filósofos para o progresso da Matemática e o desenvolvimento da Astronomia, eles não atribuíram à razão uma vocação universal, que faria dela um princípio que permitisse dominar o mundo natural ou modificar o curso da história humana. Nas cidades gregas do século V a.C., o maior contributo da razão estava na busca pela justa medida, revelada no equilíbrio dos estamentos que culminava na virtude da polis: a justiça. Era ela que impunha a todos o dever ético de evitar a liberdade total, de um lado, e o despotismo, do outro. Portanto, não havia na organização da cidade-estado uma oposição entre a ordem moral e ordem legal. Isto se torna claro quando, em sua obra A república, Platão (cerca de 427-347 a.C.) fundamenta a ordem política sobre um conjunto de valores favoráveis à realização do bem e da justiça.
Para Aristóteles (384-322 a.C.), a vida política (fundada no ordenamento da relação entre indivíduos e autoridades constituídas na cidade) e a vida ética (exercício da virtude e busca da verdade), são inseparáveis. Na Ética a Nicômaco esclarece que a vocação de dirigir a cidade se inscreve como dever de interpretar a lei no sentido do bem comum e aplicá-la em respeito à moral. Do mesmo modo, em Roma, Cicero (106-43 a.C.) irá colocar a moral em um lugar de destaque no contexto da vida pública, sobretudo quando declara a necessidade de elaborar leis humanas que reproduzam fielmente as exigências da lei natural (SORIANO et al., 2022, p. 23-36). Bem mais tarde, o Imperador Marco Aurélio (121 d.C.-180 d.C.) defenderá uma atitude moral centrada na bondade, na simplicidade e na justiça. Para ele, não existe lei sem o devido respeito à razão natural, inscrita no cosmos e na natureza humana.
A síntese entre a fé cristã e o Direito Romano, que ocorreu durante o período medieval da Cristandade, procurou manter a unidade social em torno de um diálogo contínuo entre a lei moral e a lei positiva. Entretanto, com o ocaso da Idade Média e a divisão interna do Cristianismo, a unidade moral no Ocidente foi duramente abalada. Após a Europa se dividir em nações independentes, com línguas e normas jurídicas próprias, a solução encontrada pelos modernos para estabelecer o diálogo entre os diferentes morais foi eleger a razão secular como base da gramática moral. Nasce, assim, a chamada moral secular, que instituiu a razão como único critério universal para determinar e avaliar condutas morais (ENGELHARDT, 1991, p. 22-31).
Na virada do século XVI, Nicolau Maquiavel (1469-1527), ao procurar soluções para os problemas das cidades italianas, orienta a política para a eficácia, recusando todo o comprometimento com a moral no exercício do poder. Através da teoria da necessitas (necessitas legem non habet) entende que o príncipe, diante de um perigo iminente, tem o direito pleno de agir contra a moral, cometendo delitos e crimes. Deste modo, inaugura um hiato entre vida pública e vida ética.
O projeto moderno de impor uma definição moral secularmente aceita por todos fracassou. Apesar de Immanuel Kant (1724-1804) e de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) acreditarem que a razão se realiza na história, não consideraram a diversidade desta manifestação. Para Hegel, o fim do progresso da razão é a liberdade, que não se confunde com a autonomia individual, mas se expressa como realização global no contexto da vida universal. Curiosamente, a crítica moderna aos metafísicos medievais dá lugar a um outro tipo de Metafísica, a da história.
3 – O retorno à Ética Fundamental
Apesar das reivindicações de consenso e das tentativas de impor visões morais uniformes, a diversidade moral persiste. A divergência torna-se o sinal desta época (BERMAN, 1984, p. 30), caracterizada pelo surgimento de grupos afinitários (MAFFESOLI, 2006, p. 124-125), pela democratização da hermenêutica moral e pela indeterminação axiológica. De algum modo, tais fenômenos favoreceram a ascensão da Deontologia sobre a Ontologia e do legal sobre o legítimo.
A Ética tornou-se vassala da lei positiva e a razão pura, outrora reverenciada pelo Positivismo e pelo Cientificismo, tornou-se débil. Apesar da era de incertezas inaugurada pela pós-modernidade, uma nova onda contratualista passou a conferir certeza e valor aos acordos entre indivíduos. Foi desta forma que a ética aplicada foi tornando-se prioritária em relação à ética fundamental, transformada em assunto de filósofos e sem utilidade para a vida real. Richard Rorty (1931-2007) acredita que a reflexão filosófica sobre os valores, além de não levar a lugar algum, não vale a pena (RORTY, 1988, p. 55). Para ele, “todas estas questões teóricas serão substituídas por questões práticas sobre se devemos manter os nossos valores atuais, as nossas teorias e práticas ou se devemos tentar substituí-las por outras” (RORTY, 1991, p. 44). São os elementos da vida prática, como os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) que explicam mais claramente como abstrações racionalistas (a dignidade humana, por exemplo) fundamentam os direitos humanos e o reconhecimento social (Anerkennung) dos indivíduos (RORTY, 1989, p. 196; 1998, p. 117-136).
Os filósofos analíticos, partidários do não-cognitivismo ético, defendem a impossibilidade de encontrar razões objetivas para definir os valores morais e, portanto, para a vida ética. Bertrand Russell (1872-1970) chega a declarar: “questões relativas a “valores” residem totalmente fora do domínio do conhecimento. Isto é, quando dizemos que isto ou aquilo tem “valor”, estamos dando expressão às nossas próprias emoções” (RUSSELL, 1997, p. 230-231). Do mesmo modo, Alfred Ayer (1910-1989) e William Frankena (1908-1994) defendem que os juízos morais prescindem de uma justificação lógica, ou psicológica (AYER, 1991, p. 91; FRANKENA, 1963, p. 122). Na mesma linha, Charles Stevenson (1908-1979) prega que o consenso sobre os valores é gerado pela capacidade que uns têm de influenciar outros. Para ele, “a essência do discurso ético é influenciar, não descrever” (SCHWARTZ, 2017, p. 266). De acordo com estes autores, a condição lógica dos argumentos éticos não é suficiente para resolver dilemas, pôr fim aos debates acerca dos valores e instituir consenso. Além disso, a lei natural, que sustentava a fundamentalidade da Ética para os pensadores da Antiguidade e da Idade Média, foi depreciada e expurgada das reflexões éticas.
Não se discute reverter o processo que conferiu credibilidade às regras dos códigos deontológicos na tentativa de um retorno à compreensão grega e medieval da Ética. O que se questiona é a possibilidade deontológica de uma conduta a partir da impossibilidade da ética fundamental. Afinal, para que prescrições morais gozem de validade é necessário haver razões universais que sustentem ações, apesar da pluralidade dos indivíduos e da multiplicidade dos contextos. Este questionamento pode sugerir um retorno à ética substantiva, preconizada por Elisabeth Anscombe (1919-2001) e Phellipa Foot (1920-2010), a partir da tentativa de dialogar com a ética das virtudes de tradição aristotélica (THOMSON; DWORKIN, 1968).
O retorno à ética fundamental deve iniciar com uma dupla exigência: a primeira é a substituição do atomismo moral, herdado dos modernos, pelo vínculo ético, estabelecido na fundamentalidade da lei natural. O individualismo e suas consequências, como o Utilitarismo e o Pragmatismo, trouxeram um grande prejuízo para a vida ética. O maior de todos foi transformar a pessoa em um conceito genérico, uma abstração filosófica. A segunda exigência, consoante a anterior, é a passagem da eticidade natural para a eticidade absoluta. Apesar das leis e das resoluções deontológicas profissionais serem importantes para a construção da coerência social, elas não abarcam o problema ontológico e metaético da relação entre intencionalidade e prescritividade. Sem isto, não se vai além das aparências, além da letra.
4 – Conclusão
A ética fundamental é uma ética substantiva. Nela encontram-se duas importantes dimensões: uma universal e outra histórica. A primeira entende que o homem está subordinado à lei natural. Isto não significa, no entanto, afirmar a impossibilidade de o homem poder transformar o mundo ao seu redor. Seu objetivo é mostrar que os valores morais fundamentais, além de conduzirem o homem para a sua finalidade, não perdem o sentido em prol do progresso conquistado ao longo da história. Esta dimensão universal permite compreender que os valores de uma sociedade fechada (país, nação, sistema de governo, enfim, a sociedade concreta na qual se vive) devem ser os mesmos de uma sociedade aberta (a humanidade). Aquela atua como hermeneuta desta, interpretando e sistematizando as normas axiológicas de acordo com as exigências histórico-sociais. Deste modo, o universalismo dos valores morais tende a individualizar-se. Mesmo havendo um pluralismo moral, não é possível negar valores que, por serem racionais, são comuns a todos os seres humanos (SOARES; PIÑEIRO, 2006, p. 37). A dimensão histórica reconhece, por outro lado, a necessidade de ler com profundidade os acontecimentos em uma sociedade fechada. Portanto, reduzir a ética fundamental a um esquema casuístico seria ignorar o fato de que “não possuímos uma ideia unitária do homem” (SCHELER, 1976, p. 24).
Referências
1. ADORNO, T.W. Dialettica negativa. Torino: Einaudi, 1975, p. 326-332.
2. AYER, A.J. Linguagem, verdade e lógica. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 91.
3. BENTO XVI, PP. Carta encíclica caritas in veritate. São Paulo: Edições Loyola, 2009, n. 19.
4. BERMAN, M. All that is solid melts into air. New York: Simon and Schuster, 1982, p. 30.
5. ENGELHARDT JR., H.T. Bioethics and secular humanism: the search for a common morality. Philadelphia: Trinity Press International, 1991, p. 22-31.
6. FRANKENA, W. Ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1963, p. 122.
7. MAFFESOLI, M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 124-125.
8. RORTY, R. Solidariedade ou objectivismo? Crítica, abr. 1988, 3:45-62, p. 55.
9. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 196.
10. RORTY, R. Objectivity, realism and truth: philosophical papers, vol. I. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 44.
11. RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S.; HURLEY, S (Eds.). De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.
12. RUSSELL, B. Science and religion. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 230-231.
13. SCHELER, M. El puesto del hombre en lo cosmo. Buenos Aires: Losada, 1976, p. 24.
14. SCHWARTZ, S. Uma breve história da filosofia analítica: de Russell a Rawls. São Paulo, Loyola, 2017, p. 266.
15. SOARES, A.M.M. A crise da moral secular: os desafios da ética contemporânea. In: SOARES, A.M.M.; PEREIRA, A.T.; SOBRAL, B.; TOLOMEI, R.; PIÑEIRO, W.E. Temas de ética aplicada. Rio de Janeiro: Publit, 2009, p. 11-28.
16. SOARES, A.M.M.; PIÑEIRO, W.E. Bioética e biodireito: uma introdução. São Paulo: Loyola, 2006, p. 37.
17. SORIANO, A.S.S.; SOUZA, B.M.S.; ALMEIDA, F.C.F.; GOMES, R.M. Origens do pensamento político. In: SOARES, A.M.M. (Org.). Política: você sabe o que é? Rio Bonito: Benedictus, 2022, p. 23-36.
18. THOMSON, J.J.; DWORKIN, G. (Eds.). Ethics. New York: Harper & Row, 1968, 534p.


