Luto paterno e a fragilidade masculina: um sofrimento silenciado na dor do pai
Erika Maria Rocha Leite
Mirna Albuquerque Frota
Andréia Braide
Renato da Silveira Borges Neto
Carlos Costa Gomes
1 – Introdução
Embora existam vários modelos de masculinidade derivados da inserção do homem na estrutura social, política, econômica e cultural, um modelo hegemônico emerge em cada contexto (Connell, 2005; Nolasco, 1995).
A construção da masculinidade predominante, no entanto, não socializa os homens para o cuidado de si ou dos outros (Ribeiro; Gomes; Moreira, 2017). Nesse contexto, o modelo hegemônico de masculinidade negligencia a importância da função paterna, vinculando-a apenas ao papel de provisão e apoio do binômio mãe-bebê (Ribeiro; Gomes; Moreira, 2017). Essa perspectiva está relacionada aos danos à saúde do homem, originados, em parte, da internalização de um estereótipo que ignora seus aspectos psicológicos, emocionais e afetivos (Gomes, 2011). Este fenômeno permanece claro no silenciamento do luto paterno.
O luto materno no Nordeste Brasileiro foi objeto de estudos antropológicos entre as décadas de 1960 e 1980. Sobre o luto paterno, porém, não podemos dizer o mesmo. As taxas alarmantes de mortalidade infantil sofreram redução importante a partir da década de 1990 (Lima; Medeiros; Carvalho; Alencar 2014). Além disso, a assistência obstétrica no Brasil vem sendo ressignificada a partir do movimento pela humanização do parto desde 2002 (Diniz, 2005).
Simultaneamente, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) explicita a relevância da paternidade na promoção da saúde sexual e reprodutiva do homem (Brasil, 2009). Nesse contexto, Fortaleza, capital do estado do Ceará, localizado no Nordeste brasileiro, foi pioneira na inserção do pai no processo do trabalho de parto (Rocha, 2010).
Este artigo situa-se neste vácuo deixado pelos estudos sobre as experiências do luto paterno diante da perda de filhos no Nordeste brasileiro.
Em 1992, a antropóloga Nancy Scheper-Hughes publicava o livro Death without Weeping: the violence of everyday life in Brazil, baseado em observações realizadas em uma comunidade pobre periférica da mata pernambucana no período de 1964 a 1984. A obra condensa observações já defendidas em artigos anteriores e defende a tese da negligência seletiva, segundo a qual as mães realizariam um menor investimento afetivo e material naquelas crianças mais frágeis, como estratégia para lidar com a elevada mortalidade infantil (Scheper-Hughes, Nancy, 1992). Essa tese é contestada severamente por Nations e Rebhun (Nations, Marilyn K. & Rebhun, Linda A. 1988). As autoras realizaram um trabalho de campo com uma descrição minuciosa dos itinerários terapêuticos traçados pela população na assistência às crianças adoecidas nos anos de 1979 a 1986, em meio rural e urbano do Ceará. Nations e Rebhun consideram que a negligência seletiva descrita por Scheper-Hughes era, na verdade, parte de um processo de racionalizações para dar conta de um fenômeno doloroso gerado pelo sofrimento, não devendo ser denominada como uma estratégia seletiva da prole. Essas pesquisas são cruciais para antropólogos estudiosos no Brasil, mas há nesses estudos, o silenciamento sobre o luto paterno.
O luto paterno – que muitas vezes é deixado em segundo plano em face do luto materno, mais reconhecido e mais focado na morte do bebê – não é menos importante ou menos significativo do que a dor experimentada pela mãe. Pelo contrário, um complementa o outro, pai e a mãe conceberam a vida juntos. É essencial que o luto possa ser bem vivido e compartilhado para ambos, em sua dimensão materna e paterna. Nem a dimensão paterna pode diminuir o significado da dimensão materna, nem a dimensão materna pode diminuir o sentido da dimensão paterna.
Outro ponto em destaque é o momento histórico. Os estudos de Scheper-Hughes e Nations e Rebhun aconteceram em momentos históricos em que o Nordeste apresentava taxas de mortalidade infantil alarmantes. Essas taxas de mortalidade infantil sofreram redução importante a partir da década de 1990 (Helsly et al., 2014). A participação ativa do homem no pré-natal e no parto vem influenciando a ressignificação das identidades masculinas, incluindo os sentidos atribuídos à paternidade (Braide et al., 2019).
A resposta do pai à perda gestacional é semelhante, mas menos problematizada que a da mãe (Badenhorst e Hughes 2007); é também menos percebida, menos investigada e, consequentemente, menos reconhecida socialmente. Considera-se, em princípio, que as mulheres expressam melhor os sentimentos e buscam mais apoio após a perda (estilo intuitivo), enquanto os homens são mais voltados para a ação e resolução de problemas, mais reflexivos e mais preocupados em fornecer apoio emocional aos parceiros. É importante, no entanto, perceber que essas diferenças podem representar estereótipos de gênero que devem ser desconstruídos como tal, e que é aceito que as características de um e de outro estilo possam estar presentes, em um continuum, tanto no homem quanto na mulher (Doka, 2000; Douglas and Fox, 2009).
Salienta-se, deste modo, a importância de situar o sofrimento emergente do pai como centro deste estudo, envolvendo a ressignificação desde assistência obstétrica e de como esta mudança influência nas subjetividades masculinas (Braide et al., 2019).
Neste artigo, portanto, o foco descrito mostra como acompanhar e auxiliar o pai-homem nesse processo de luto, reconhecendo a humanidade desse homem que, muitas vezes, pode sofrer até mais diante dessa realidade de perda do que a própria mãe-mulher. Enquanto a dor materna é rapidamente percebida e aceita pela sociedade, muitas vezes a dor paterna é como uma hemorragia interna, uma dor de difícil percepção ao olhar de fora; muitas vezes os sintomas só vêm à tona quando o sangramento atinge seu estágio fatal e com grande dificuldade para ser tratada (Leite, 2016).
Nesse caso, a referência “fatal” diz respeito ao mais íntimo de si mesmo, dos sonhos, desejos, perspectivas, caráter. Amputar esse sentimento do pai-homem é amputá-lo de si mesmo, de sua essência, daquele que também é gerador da vida. Seu bebê pode não apresentar mais sinais vitais, mas permanece vivo em sua memória, em sua história; seu filho continua sendo vida de sua vida (Leite, 2016).
Para entender bem este estudo, é necessário conhecer esse homem e seu contexto de vida e sua relação com a morte. É preciso também compreender a realidade hospitalar em que esse pai está inserido; apenas assim, é possível perceber como a perda gestacional aflige esse pai.
2 – Métodos
Foi realizado estudo qualitativo (Gomes, 1994), baseado nos pressupostos da Antropologia estabelecidos em recursos etnográficos e, como lente teórica, Kübler-Ross (KÜBLER-ROSS, 2007). O cenário da pesquisa foi um hospital secundário em Fortaleza (Ceará, Brasil), referência em saúde materno-infantil, localizado na Secretaria Executiva Regional VI (SER VI). O programa institucional “Parto que te quero perto” foi implantado nesta maternidade, em 2009, para aproximar o homem do processo de gestação, parto e pós-parto, contribuindo para a ressignificação da paternidade. Mais do que questões técnicas, esses momentos buscam destacar a experiência de ser pai.
A escolha do local foi motivada pelo pioneirismo hospitalar no cuidado ao parto humanizado na região Nordeste do Brasil, com a participação do pai no pré-natal e no parto, sendo a unidade hospitalar referência no município de Fortaleza, capital do Ceará.
A amostra foi composta por três homens nordestinos que eram usuários do Hospital envolvido e concordaram livremente em participar, após o conhecimento prévio e consentimento formalizado com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estudo aconteceu entre janeiro e novembro de 2016 e usou-se como técnica a entrevista semiestruturada (Minayo, 2012) abordando aspectos de identificações pessoais como: faixa etária, escolaridade, seguidos de questões sobre os sentimentos deste homem-pai relacionados à perda, morte e luto. Foi considerada a observação livre, diário de campo e gravações, onde o pesquisador estava inserido no campo da pesquisa observando os procedimentos, as inter-relações e reações.
Os dados foram processados dentro da análise de conteúdo de Bardin (2016); foi realizado o processamento, categorização e, posteriormente, a interpretação discutida de acordo com a Etnografia e a literatura pertinente ao tema estudado (luto e sofrimento paterno), respeitando a Resolução 466/12 do Comitê de Ética em Pesquisa, que trata de pesquisas envolvendo seres humanos, referentes aos princípios de autonomia, não maleficência, beneficência e justiça (Brasil, 2012). Os participantes tiveram seu anonimato garantido, acesso aos dados da pesquisa e seus direitos protegidos e protocolo CEP nº 1.415.960.
3 – Resultado
No hospital público da periferia de Fortaleza, Ceará, Brasil, os pais participantes da pesquisa vivenciaram um processo avassalador de luto pela morte perinatal. Eles expressaram sentimentos masculinos e profundos sobre seus filhos falecidos com uma semântica carregada de significado emocional e afetivo, como: “Nunca esquecerei meu filho”, “Meu amor por ele será eterno” e “Eu me lembrarei dele para sempre”. Os pais entrevistados expõem suas expectativas durante a gravidez e o choque desconcertante no momento da morte da criança. Suas linhas expressam a ruptura de planos e sonhos futuros e as inseguranças para lidar com a realidade da perda. Eles são capazes de esquecer sua própria dor para apoiar e confortar suas esposas e companheiras, as mães de seus filhos.
A seguir, apresentaremos três casos de óbitos perinatais vivenciados pelos pais Eduardo, Cristiano e Sérgio. A multivocalidade desses pais sobre a morte de seus filhos revela a singularidade da construção cultural da perda e da dor. Os detalhes da experiência subjetiva de cada caso ilustram como o sofrimento da morte e do luto é amplificado pela biologia “enganosa” da gestação, da des-legitimação do discurso paterno e do contexto hospitalar que, de maneira insidiosa, viola o princípio da humanização – Cuidado. O último caso demonstra a capacidade paternal de suportar “o insuportável”, o falecimento de uma criança. Durante um duplo luto do filho e do avô, o pai renuncia milagrosamente à morte dos amados. Assim, o luto paterno é capaz de atribuir um novo significado à perda definitiva de vida e ao amortecimento, embora não elimine o sofrimento, a dor e o sofrimento prolongado.
4 – Pai Grávido de “ovo cego”
Eduardo, 30 anos, regozijou-se ao ver sua esposa, Renata, de 17 anos, anunciando que estava grávida!
Vale contextualizar que, segundo o relatório “A Criança e o Adolescente nos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável)”, editado pela Fundação Abrinq, o Ceará é o quarto estado do país com maior número de casamentos de meninas menores de 19 anos. O estudo, realizado com dados de 2015, mostra que 6.996 meninas com menos de 19 anos estavam casadas neste período no Ceará. As estatísticas registram apenas uma parte do problema, já que maioria das uniões são informais, especialmente nas comunidades mais vulneráveis (Fundação Abrinq., 2017). A análise destaca que, embora um casamento na infância ou na adolescência possa criar ou exacerbar fatores de risco, ele é frequentemente percebido por meninas ou membros da família como possibilidades de estabilidade em contextos de insegurança econômica e oportunidades limitadas (Taylor, A.Y., Lauro, G., Segundo, M., Greene, M.E. 2015).
Renata é uma dessas meninas. Eduardo é um desses maridos.
Trazer o contexto em que essa união e essa gravidez se situam é crucial para a compreensão do lugar de fala de Eduardo.
O vínculo de Eduardo com o bebê foi fortalecido com o passar dos meses. Ele relata que costumava deitar-se ao lado da esposa grávida e abraçá-la com intuito de sentir seu filho, Gladson Levi. Ele julgava senti-lo chutando a barriga da esposa. Ele queria ver sua esposa se tornar mãe depois de abortar os dois primeiros filhos. No entanto, às três horas da madrugada de 24 de novembro de 2016, seu desejo foi conduzido por outro caminho. Eduardo relata ter sido conduzido pelas circunstâncias a deixar Renata sozinha no hospital porque não podia faltar ao emprego. Já internada, a resolução do problema estava demorando. As explicações não eram fornecidas de modo claro, o que deixou Eduardo e Renata sem entenderem ao certo o que se passava com seu filho. Tinham entendido que, no momento da internação, Renata estava em trabalho de parto. Ele imaginava que ocorreria um parto extremamente prematuro, mas não podia cogitar o que viria a acontecer. Renata telefonou para o marido e deu a notícia: o filho nasceu morto! Transtornado, Eduardo correu para o hospital: “Eu voei para o hospital, droga, para se livrar de um acidente”. Ele entrou no alojamento conjunto muito perturbado. Eduardo se aproximou da pálida esposa, tremendo e chorando em silêncio. Ambos se abraçaram por um longo tempo. “Era apenas tristeza, choro, choro. Ela estava chorando de um lado e eu estava do outro”.
O obstetra entrou rapidamente no pós-parto para examinar Renata. Ele explicou ao casal que isso era, na verdade, uma gravidez anembrionária ou “Ovo Cego”. Nunca houve a materialidade do feto, o corpo físico do Gladson Levi, filho de Eduardo e Renata. Para ele, o filho era real. Ele amou o filho; julgou sentir seus movimentos. Agora sabia que não chegou a haver desenvolvimento embrionário. No entanto, não diminuiu o sofrimento. Eduardo ficou enojado com as palavras do médico e “gravidez enganosa”. Ele não aceitou o fato de que a esposa teve um teste de gravidez positivo e fez quatro consultas de pré-natal que ele mesmo acompanhou. No entanto, Renata não fizera nenhuma ultrassonografia. Este exame teria mostrado a ausência do embrião. A negação de Eduardo acerca da ausência material de seu filho era tal, que ele chegava a falar de enterro: “E, agora, precisamos organizar o papel para fazer o enterro. Eu sonhava em ter um menino, mas ele foi embora!”.
Os profissionais que assistiram Renata na internação na emergência demonstraram habilidades de comunicação precárias. A falta de cuidado em esclarecer o que de fato transcorria majorou a dor da perda. Não bastasse esse lapso preliminar, a internação foi causa de sofrimento adicional. Na acomodação hospitalar, a mãe-enlutada dividiu a sala com três novas mães e seus bebês, que dormiram juntos com seus bebês. Três recém-nascidos que estavam vivos. Eduardo notou o longo silêncio de sua esposa, que chorava quando outra mãe amamentava seu bebê. Ele também sofreu vendo e ouvindo os bebês vivos: “Ela viu os meninos chorando. Oh, você está pensando em nós, certo? E eu também”. Seu marido temia que ela pudesse “cair em depressão” vivendo no mesmo ambiente que outras mulheres acalentando o choro dos bebês, rindo de fofocas incomuns, beijando seus pequeninos. Descontente com a violência velada da situação, Eduardo solicitou a transferência para outro hospital. Um assistente social tentou persuadi-los a ficar lá. No entanto, ele insistiu que era um contexto insuportável para aqueles que não tinham bebês em seus peitos, e muito menos um embrião.
Havia apenas lembranças “cegas” que ficaram. Eles sofreram com a morte de um bebê que nunca existiu. Eduardo disse: “Ele é um pedaço de mim, e ele permanecerá em nossos corações para sempre. Memórias são para sempre”. Embora o pai-enlutado pense que eles precisarão de ajuda profissional de um psicólogo para superar a morte de um bebê nunca existente, é mais difícil para ele ter folga das exigências do trabalho para participar, “eu preciso trabalhar duro para sustentar meus filhos, não é?”. No entanto, Eduardo pretende imortalizar a criança em sua própria pele. Ele terá o nome de seu filho tatuado em seu ombro, como fez com suas duas filhas também mortas em período gestacional. Cada vez que ele olha para seus pulsos e vê os nomes de suas garotas, Laura e Laís, escritas em letras cursivas entre duas estrelas; ele se lembra do brilho que elas trazem para sua vida. Este tributo inscrito na carne, ele pensa, sela a relação do amor para sempre. Ele criou sua própria “terapia” para lidar com a tristeza. “Nós vamos levantar nossas cabeças e seguir em frente até onde Deus permitir, certo? Porque nós não queremos isso, mas aconteceu, certo? Naquele momento, é apenas um desejo no pensamento e na alma!”.
Eduardo reconhece a importância do trabalho dos profissionais, como os psicólogos, para ajudar neste momento difícil: “É certamente bom ter uma pessoa para conversar no momento e que possa entender nossa dor. Uma pessoa a quem podemos desabafar, chorar e possamos seguir em frente”.
5 – Experiência de Ser Pai Grávido Deslegitimado
Cristiano, de 33 anos, telefonou às 3 da manhã para um taxista levar sua esposa, Patrícia, 30, grávida de 39 semanas e 5 dias, para o hospital público mais próximo. Ela estava com dor pélvica grave. Embora nervoso, Cristiano não esqueceu de pegar todas as ultrassonografias pré-natais e documentos de sua esposa que já estavam organizados em uma maleta em caso de emergência: “Eu tinha em mãos todas as ultrassonografias, todas as morfológicas e as normais. Eu tinha todas os exames! Era uma menina”, gritou ele. Ele relata tê-la acompanhado em todas as seis consultas de pré-natal, assegurando-se de que a futura mãe tomasse a vacina antitetânica e seguisse uma dieta equilibrada e saudável. Segundo Cristiano, a única complicação que Patrícia sofreu foi uma infecção do trato urinário. Cristiano relatava ter vivenciado todos os momentos da gestação muito de perto, tendo participado das consultas e dos encontros de pais. Ele aceitou a vivência oferecida pelo serviço de participação do pai no processo da gravidez e do nascimento e a aproveitou ao máximo.
O momento do Parto, contudo, não foi como o desejado. Patrícia foi internada na sala de emergência com pré-eclâmpsia grave e descolamento prematuro da placenta. Devido à gravidade do caso, o obstetra realizou uma cesariana. No momento da retirada do bebê, este não apresentava batimentos cardíacos. Manobras de ressuscitação, intubação, massagem cardíaca e administração de adrenalina foram realizadas. A causa da morte foi anoxia devido ao deslocamento placentário; “nós não tivemos sucesso. Eu não tive sucesso como pai, nem os médicos em cirurgia. Eu não tive sucesso como pai tendo uma filha em seus braços, nem os médicos tiveram sucesso na cirurgia”.
Quando ficou sabendo da morte de sua filha, Cristiano foi dominado por sentimentos de revolta e culpa, ele gritou: “Eu queria uma cesárea precoce, pedi uma cesariana precoce”. Esse pai, que se vestia modestamente, jeans, camiseta e óculos, também era forte, apesar de seus gestos medidos. Depois de um grande lamento, já cansado de chorar, andou muito devagar no corredor do hospital, enquanto outros pais caminhavam com os filhos vivos nos braços. Esta já foi a terceira perda gestacional consecutiva do casal; nas outras duas perdas as gestações chegaram até o sétimo mês. A primeira e única filha viva do casal nasceu em um parto em que foi realizada uma cirurgia cesariana precoce, por isso Cristiano insistiu tão intimamente com os médicos que acompanharam a gravidez, durante o Pré-Natal, que ele queria que o mesmo procedimento fosse realizado. Ele explicou detalhadamente aos obstetras cada história das outras três gravidezes, expôs o sofrimento da esposa em partos sem sucesso, praticamente implorou pela intervenção de uma cesariana precoce. Infelizmente, nenhum médico aceitou, e no final dos nove meses o bebê nasceu morto: “Foi uma vida que se foi, foi um pedaço de mim e sua mãe, o que se foi não tem retorno”.
Esta tinha sido uma gravidez planejada; o quarto da filha estava pronto. Cristiano, assim como outros pais que acompanham suas esposas no serviço em questão, pode ser considerado um pai atípico dessa região do Nordeste brasileiro. Pode-se dizer que ele também estava grávido, porque ele viveu essa gestação afetiva e efetivamente junto com sua esposa. Suas expressões de dor pós-parto foram fortes e profundas ao ponto de questionar a equipe médica do hospital onde o pré-natal foi realizado, assim como seus próprios valores existenciais. O caso de Cristiano é realmente um quadro muito peculiar de sofrimento contínuo e pode ser considerado crônico.
Este pai-grávido, grávido emocionalmente, mesmo na alma estava grávido. Cumplicidade, sensibilidade e comunhão o definem. Como alguém pode não ouvir a gravidade de seus sentimentos? Como essas perdas podem ser elaboradas? Como se pode dialogar com um conselho médico que não considera a fala do pai em toda a sua complexidade? Como lidar com o sentimento de desamparo desse homem diante da negação dos médicos?
Admitir que o evento da morte vai além de sua própria capacidade de resolver e buscar ajuda adequada pode ser um primeiro passo para o amadurecimento desse ciclo delicado e doloroso de perda gestacional. Patrícia apresentava pré-eclâmpsia. Esse quadro requer um cuidado especial em decorrência de sua gravidade. Para isso, os aspectos técnicos são extremamente importantes. A Medicina Baseada em Evidências é crucial para a assistência tecnicamente correta a esses casos. Contudo, se a técnica é importante, ela não é o suficiente. Diante de um relato de três gestações com desfechos trágicos e de uma gestação complicada por uma Síndrome Hipertensiva, faltou aliar a técnica à humanização da assistência, à escuta adequada e ao acolhimento das dúvidas, dos questionamentos e também da dor desse pai e dessa mãe.
6 – Eterna Paternidade que Supera a Perda
Rita, grávida de 28 semanas, acordou o marido Sérgio, 28 anos, queixando-se de dor esporádica no baixo-ventre. Embora não houvesse sangramento ou perda de líquido amniótico, o jovem casal entrou em pânico porque era muito cedo para o filho nascer.
De sua residência nos arredores de Fortaleza, demorou quase 40 minutos no trânsito para que Sérgio chegasse à emergência da maternidade. Durante os 20 ou 30 minutos que aguardavam a participação da enfermeira rastreadora, Sérgio lamentou estar no hospital público para um parto cercado de incertezas e ameaças. O plano de saúde privado que ela pagava todos os meses não cobria os cuidados com a gravidez e o parto. “Acabei chegando a um hospital público”, lamentou Sérgio, sentindo-se inseguro na instituição feita “pela multidão … que era tão fraca na estrutura e limpeza”. A condição física era precária: “sala de recepção” com banheiro quebrado, tinta das paredes manchadas e água da chuva jorrando do teto; ele ficou ainda mais ansioso. A enfermeira, preocupada com os resultados do rápido exame inicial, chamou o obstetra de plantão. O casal ficou paralisado pelas más notícias, tentando entender o verdadeiro diagnóstico: o primeiro bebê, Bruno, ainda aconchegado na barriga da mãe, estava morto.
Admitida à maternidade por “resolução da gestação interrompida em 28 semanas”, Rita foi submetida à indução do parto para expelir seu filho morto com medicação via vaginal para estimular as contrações uterinas a ter um nascimento cefálico “normal” do feto. Após 24 horas, nada de expulsão e estes pais tinham seu sofrimento mais latente do que qualquer contração.
No entanto, antes de expulsar o filho morto, outra perda, o pai de Sergio, o avô do bebê, morreu dois antes e foi enterrado. Chorando, o jovem fala da dupla dose de morte que bateu à sua porta: “Na quarta-feira, antes de meu filho morrer, perdi meu pai e dois dias depois, perdia meu filho. Eu só queria chorar… Eu queria saber por quê tudo isso estava acontecendo de uma vez”.
Somente após quatro dias de internação, Rita expeliu prematuramente um feto morto. Para “remover os restos”, o obstetra realizou uma curetagem no útero, dolorosamente sem vida. Na verdade, a mulher grávida havia expulsado não apenas um feto humano sem vida, mas também todos os sonhos, desejos e planos para a criança. Para o casal enlutado, o filho, Bruno, já era tão “real” quanto o bebê chorando no berço ao lado. O argumento bem intencionado do profissional de saúde de que o casal “era jovem e saudável e poderia ter outras crianças” em vez de os consolar, teve o efeito oposto: aumentou a sensação de que seu filho era único, único e insubstituível. Por vezes é preciso olhar pela lente da sensibilidade e ética.
Simbolicamente, a interrupção da gestação representou a ruptura do ciclo natural da vida familiar para este homem. Perder uma criança antes de sua própria morte, explicou Sergio, é contra a “Lei da Vida” e muda a continuidade familiar, um forte valor moral. Foi filho único, se espelhou no papel masculino de seu próprio pai, “um homem carinhoso e afetuoso”. Estudou farmácia na universidade para trabalhar no negócio de seu pai, dono de várias farmácias, além de, como era tradição em sua família, assumir firmemente o papel de provedor, e agora deveria assumir os cuidados de sua mãe, agora uma viúva. E com a morte de seu pai e filho na mesma semana, Sergio é agora o único homem na linha de sucessão.
A ressignificação da dupla perda de vida, portanto, é o trabalho de luto por este homem. Baseado em sua religiosidade e visão de vida após a morte, Sérgio transfigura, em seu imaginário, tanto a continuidade da linhagem familiar quanto a eterna paternidade. Mesmo sem sinais fisiológicos vitais, Sérgio assume que ele é o “pai” de um menino; sua esposa, Rita, é a mãe. Juntos, os três formam uma família. “Sinto-me, sim, como pai, embora Bruno não viesse ao mundo vivo. No entanto, como sou pai, ela também é mãe e nós somos uma família”. Ele ainda projeta, no futuro, a vitalidade do filho morto que não apenas vive em outro plano, no céu, mas também cresce de maneira saudável. Ele explica que olhar atentamente para o corpo sem vida do feto ajudou a “imaginar como ele seria bonito!” Assim, esse pai enlutado pode, em seus pensamentos particulares, ressuscitar o único filho e acompanhá-lo através dos anos até a sua própria morte.
“Eu sempre terei um vínculo com meu filho, sim!” Porque eu pretendo enterrá-lo com meu pai que está no mesmo lugar onde minha avó está enterrada. Então, eu vou visitá-los, certo? Eu vou visitar meu pai, eu vou visitá-lo”. Sérgio acredita que o avô de Bruno cuidará do menino no Céu dando continuidade ao papel paternal do cuidado: “Meu pai está cuidando dele”.
O duplo luto por esse pai está sendo um processo de “amadurecimento na vida”. Construir na mente e alma a continuidade familiar na eternidade, alivia a angústia pós-morte nele: “Eu não sinto revolta, não. Acho que estou suportando bem. Luto pra mim, agora, é apenas um momento de dor, de reflexão, de pensar mais sobre a vida, né? É um momento de conversar comigo mesmo”. Assim, ressignificando a morte do pai e do filho, Sérgio consegue suportar a dor da perda de dois familiares queridos.
7 – Discussão
Como quaisquer aspectos identitários, a paternidade é uma construção social influenciada diretamente por aspectos subjetivos e socioculturais (Ribeiro, 2015). Sabemos que esforços vêm sendo empreendidos na assistência obstétrica no Brasil, no sentido de aproximar o pai do processo do nascimento (Rocha, 2005). Há evidências de que essa mudança na assistência tem humanizado o processo do nascimento e contribuído positivamente para a ressignificação do ser pai de muitos homens (Braide et al, 2019). Contudo, mudanças de construções sociais tão arraigadas não ocorrem da noite para o dia. O que os relatos nos mostram é que mesmo em instituições comprometidas com a humanização do parto e com a inclusão do pai no processo do nascimento, diante de um caso de gravidade, seu luto não é acolhido.
Apesar da inserção do homem no processo de pré-parto, parto e puerpério, apesar dos avanços já obtidos (e que não podem ser desconsiderados), em momentos de desfechos graves ainda há negligência dos aspectos emocionais desse homem-pai, que é colocado apenas na função binômio de apoio da mãe-bebê. Pode-se inferir desses relatos, que a dor das mães também não foi abordada, demonstrando a persistência de lapsos de humanização da assistência, apesar da proposta do serviço. Essas dores, contudo, não foram objeto dessa pesquisa. Registre-se aqui somente que não devem ser desconsideradas ou minimizadas.
Vale lembrar do contexto no qual nossos informantes se inserem: uma região do país marcada pelo estigma, violência e influência machista (Brilhante et al, 2018). A construção das identidades masculinas nessa região segue arraigada ao ideário de masculinidade que a associa com força, violência e virilidade (Brilhante et al, 2018). Nossos informantes não destoam desse lugar: são provedores e associam cuidado à função paternalista de assegurar que a mulher tome as vacinas e alimente-se adequadamente, como é esperado dentro do modelo de masculinidade hegemônico no Nordeste do Brasil (Albuquerque Júnior, 2003). Essas caraterísticas se fortalecem em um contexto de vulnerabilidade social. Diante de condições desiguais de distribuição de renda no Brasil, o homem pobre é condenado a não cumprir – ou ter dificuldades em cumprir – o provimento de sua família, o que pode colocar em risco sua masculinidade e reforçar o uso da força física como modelo de afirmação da masculinidade (Longhi, 2001).
Nossos informantes demonstraram, contudo, que mesmo esta masculinidade hegemônica é um estereótipo; e estereótipos não representam pessoas em toda sua complexidade. Eduardo, Cristiano e Sérgio precisavam ser, porém não foram, acolhidos em seu luto por uma confluência de fatores que incluem falhas estruturais no serviço e negligência atitudinal dos profissionais envolvidos, reforçada por aspectos culturais. Essa negligência situa-se em contexto assistencial e bioético que vem culturalmente negligenciando a saúde do homem, em grande medida por internalizar em suas estruturadas os estereótipos hegemônicos de masculinidade (Ribeiro et al, 2017).
A construção da masculinidade predominante no Brasil legitima o mito da invulnerabilidade masculina e não estimula os homens para o cuidado de si ou do outro (Separavich; Canesqui, 2013). Esse modelo cultural prejudica a atenção à saúde do homem por uma série de fatores, dentre os quais: a vacância nas unidades de atenção primária à saúde (APS) e a busca tardia de serviços de saúde, quando o sujeito já se encontra em estado avançado de adoecimento (Couto; Gomes, 2012). O fato é que as políticas públicas voltadas para homens esbarram em questões culturais na implementação (Gomes et al, 2012), o que é reforçado em nossos resultados. A contraposição do homem que precisa ser forte em oposição a mãe e o bebê, percebidos como os componentes mais frágeis e vulneráveis, compõe esse complexo cultural que contribui para a negligência do luto paterno.
Como resultado, tais paradigmas influenciados pela nossa cultura de gênero, impedem que os profissionais de saúde – e os homens – se percebam como sujeitos dos direitos à saúde. Os frutos desse processo são ações voltadas para a paternidade que não podem concretamente incluir os homens nas ações de saúde em geral, e articular-se com ações que historicamente têm mulheres e crianças como alvos de atenção (Ribeiro; Gomes; Moreira, 2017). Considerando esse contexto, acreditamos que o luto paterno precisa ser mais bem trabalhado e que o pai precisa estar totalmente integrado à unidade familiar. Os serviços precisam considerar a unidade familiar como uma tríade pai-mãe-bebê e não como um binômio, cuja função paterna é simplesmente fornecer apoio.
Nesse contexto emerge a necessidade de revisão de conceitos e práticas sobre a morte no processo vital, situações limitantes como doença, enfrentamento da morte real e o processo de luto (Franco; Kovács e Carvalho, 2011). Até que ponto se pode falar em liberdade de ação dentro dessa rede de valores e representações? É possível, no século XXI, uma educação saudável para a morte? (Kovacs, 2003). Um alerta sobre os cuidados com a bioética no enfrentamento do direito cidadão de, simplesmente, sofrer.
O luto é a resposta esperada diante do rompimento de um vínculo com alguém muito próximo, considerado um estressor grave que normalmente causa sintomas de dor aguda de progressão satisfatória. Normalmente, não necessita de intervenção clínica, entretanto, pode evoluir para uma condição debilitante crônica (Shear et al., 2012); por isso, torna-se tão necessário perceber, admitir e compartilhar a dor, pedir ajuda, permitir a si mesmo ser ajudado e viver esse momento.
A resposta do pai à perda gestacional é semelhante, mas menos pronunciada, que a da mãe (Badenhorst e Hughes, 2007) e, ao que se tem percebido, menos investigada e socialmente menos reconhecida, até pelos diferentes papéis, o modo de vivenciar a gestação e a grau de apego estabelecido com a criança. Considera-se, em um primeiro momento, que as mulheres expressam sentimentos de um modo mais satisfatório e buscam mais apoio após a perda (estilo intuitivo), enquanto o homem é mais voltado para a ação e resolução de problemas, é mais atencioso e se preocupa em fornecer apoio ao parceiro (estilo instrumental).
No campo de coleta de dados, os homens participantes mostraram seu sofrimento profundo com o impacto da perda e que, ao mesmo tempo, foram tomados pela necessidade de “resolver” procedimentos burocráticos e práticos com relação à morte da criança.
Devido às expectativas sociais, espera-se que os homens tenham mais autonomia do que as mulheres. Por isso, acabam tendo maior dificuldade em expressar publicamente suas fraquezas e pedir ajuda, pois para eles isso seria um sinal de que eles não são autônomos o suficiente para resolverem seus problemas sozinhos e, portanto, não corresponderiam às expectativas colocadas neles (Doka, 2000). Por causa dessa cultura, eles passaram a acreditar que suas perdas não deveriam incomodar os outros. Eles devem ser capazes de enfrentar suas perdas sozinhos. Isso ocorre de forma diferente com mulheres que expressam facilmente seus sentimentos e acolhem a ajuda de amigos e parentes com mais tranquilidade, pois isso é permitido e até esperado socialmente.
No caso da perda gestacional, a negação da complexidade da dor pelo homem pode ser ainda mais grave. É verdade que o processo de luto da perda reprodutiva ainda não é bem compreendido. É por isso que é essencial que devemos prestar mais atenção à manifestação do luto gestacional na realidade dos homens, já que eles tendem a tornar invisível sua dor (Seffel, 2006).
Os homens aqui mencionados reconhecem o grande sofrimento da mãe e dão a esse sentimento prioridade sobre o próprio sofrimento. Os pais estão lutando para sustentar suas esposas, ser seus parceiros neste momento, até mesmo esquecem sua própria dor para cuidar de sua esposa e companheira. Esquecer sua própria dor para satisfazer a necessidade do outro é louvável, mas não podemos dizer que isso signifique que o luto não existe e não precisa ser cuidado, pelo contrário, quanto mais o homem admite e se permite sofrer, melhor ele vai entender a mulher e permitir que ela sofra. Ao reconhecer e expressar sua dor, o homem também admite sua necessidade de ser apoiado e ajudado também.
É nesta reciprocidade de vínculos que o luto pode ser processado com saúde. É essencial que, no momento da morte gestacional, a diferença entre homem e mulher seja reconhecida e, ao mesmo tempo, possa ser vista de maneira muito positiva e vital. Admitir essa diferença é reconhecer a necessidade de complementaridade que favoreça profundamente e fortemente os laços.
O luto é diferente em cada cultura e em cada estágio do desenvolvimento individual, e sofre influência social (Papalia e Feldman, 2013). Assim, compreender o processo de luto requer tempo e deve-se reconhecer os diversos fatores e variáveis para pensar o diagnóstico clínico (Freitas, 2000). No nordeste do Ceará há uma característica que foi imposta aos homens, é o “bode sim senhor!”, uma expressão típica desta região. Aquilo que chamamos de machismo. Essa característica prendeu muitos homens em estereótipos duros, que não lhes dá permissão para chorar ou para mostrar sensibilidade; entretanto, durante as entrevistas, foi percebido que esse paradigma passava por algumas transformações, ou seja, os homens entrevistados mostravam sentimentos e emoções de arrependimento, choravam e expunham sua sensibilidade em relação à morte e ao luto.
Em relação ao hospital envolvido, os pais reconhecem a humanização dos profissionais de saúde, mas admitem necessitar de melhoras na estrutura física do ambiente hospitalar, que é deficiente. No ambiente profissional desse hospital, a percepção da dor paterna no momento da perda gestacional já está sendo percebida melhor e estão sendo mais cuidadosos.
No entanto, ao mesmo tempo, por se tratar de um hospital público localizado em uma região de risco, existe um clima de tensão e desconfiança em relação aos próprios pais, principalmente com situação sócioeconômica baixa, estigmatizados pelo preconceito. Isso não favorece a que esse homem faça uma catarse das emoções nesse momento crítico (Kovács, 2003). A trajetória do luto vivido por esses homens revela uma característica peculiar do homem nordestino: a capacidade de enfrentar situações trágicas em um contexto social marcado pela corrupção e pela desigualdade social, onde o Estado não garante a autonomia do cidadão.
A perda gestacional implica um impacto profundo no casal e na vida familiar. Expectativas sobre o novo morador, projeções sobre o futuro com a nova criança, mudanças nos hábitos e ambientes do lar para acolher o recém-nascido, preocupações sobre o cuidado que será necessário para o bebê, tudo isso, aparentemente, é drasticamente desconstruído. No entanto, embora seja uma desconstrução real do evento da chegada de uma nova vida, exige tempo e esforço para uma desconstrução subjetiva de emoções e sentimentos (Papalia e Feldman, 2013). Esse impacto da perda gestacional, aliado aos desafios do contexto em que esses pais estão inseridos, exige um olhar cuidadoso para aqueles homens que, mesmo quando estão indefesos, tentam sustentar suas famílias.
Os pais aqui, mesmo com fortes traços do homem nordestino, “cabra macho, sim senhor”, expressaram grande sensibilidade quanto ao sofrimento e para demonstrar seus sentimentos. Durante as entrevistas, eles foram emocionais, choraram, manifestaram seus transtornos psíquicos e afetivos antes da morte do filho. Isso revela que o perfil desse macho está passando por transformações (Kübler-Ross; Kessler, 2007), mas que é necessário investir em uma “educação para a morte” através de reflexões profundas.
Todos esses homens de origens muito diferentes admitiram que era bom conversar com alguém sobre a morte e o luto do filho, todos expressaram que gostariam de continuar um processo, seja em um grupo terapêutico, seja em uma terapia pessoal em relação a ele, para lamentar. Isso indica que esses homens começam a elaborar melhor sua complexidade humana e que não podem mais ser estigmatizados como um animal, um(a) cabra. Expressando sua capacidade de reconhecimento e confronto de luto de forma efetiva e afetiva, esse pai nordestino mostra uma evolução positiva quanto aos determinantes antropológicos do homem simples da região Nordeste. O solo árido e seco deixará de determinar um caráter grosseiro e irracional. Mostra que, embora marcado pelas consequências desse ambiente, esse homem é capaz de ir além das influências e marcas de um mundo desolado de misérias. Isto significa força de influência sobre uma realidade, e não simplesmente deixar-se influenciar por ela.
Os pais que participaram deste estudo mostraram uma percepção sensível sobre as consequências da perda gestacional de seus filhos, mesmo pertencendo a uma cultura machista. Eles também sofrem a pressão das classes sociais. O pai da família, geralmente, sofre de um contexto social de pobreza, onde a renda per capita é subornada e injustamente distribuída. Ele carrega consigo a fadiga e a insatisfação no trabalho. Além disso, na maioria das vezes, eles estão restritos a desempenhar apenas o papel do provedor material e financeiro da família, sem compromisso afetivo e emocional. Consequentemente, isso cria um ambiente familiar hostil e, na maioria das vezes, evolui para violência e dominação diante de mulheres e crianças. No entanto, mesmo com todos esses determinantes, os pais entrevistados mostraram um profundo choque emocional com a morte dos filhos e uma grande preocupação com os sentimentos da esposa ou companheira.
Também foi notado que esses pais demonstraram a capacidade de continuar o vínculo. Em suas linhas pôde-se notar o desejo de preservar a memória de seu filho: “Certamente ele se foi, mas sempre permanecerá em nossos corações” (Eduardo). Há a intenção de continuar o relacionamento com a criança: “Meu relacionamento com meu filho terá uma continuidade, meu amor por ele será infinito enquanto eu estiver vivo, e meu pai está cuidando dele lá em cima” (Sergio). Essa ressignificação reflete uma compreensão da morte que ajudará a viver melhor os outros ciclos da vida. Isso favorece a abordagem da finitude como parte integrante da existência, e não algo contra ela. Desta forma, percebe-se que a chave para a questão da morte abre as portas da vida (Kübler-Ross, 1975). O sentimento deixa a marca do amor desde a semente germinada: “Mesmo sendo um ovo seco estava ali meu filho amado sempre” (Cristiano).
Aqui a espiritualidade e a transcendência também estão inseridas no universo masculino. Nessa região do nordeste brasileiro, muitas vezes esse espírito religioso é relegado apenas ao mundo das mulheres deixando-as, muitas vezes, sobrecarregadas com a total responsabilidade da transmissão e cultivo dessa dimensão. Ao perceber nas expressões desses homens a familiaridade com esse ambiente místico, percebe-se mais uma vez a evolução da cumplicidade dos papéis masculinos e femininos no contexto familiar.
Um dos pais mostrou desconforto profundo por ter que ficar no mesmo hospital com outros pais e seus filhos vivos. Uma relação hostil na observação dos pais enlutados. Reflete a sensibilidade e a percepção dos homens quanto à indiferença do meio ambiente e dos profissionais que deveriam ser os primeiros a considerar o contexto da morte e o luto da perda reprodutiva (Rattner, 1996). A negligência hospitalar nesse sentido também reflete a predominância de uma ação assistencial baseada na biomedicina, cuja preocupação é centrada na cura corporal, negligenciando aspectos subjetivos, emocionais e psíquicos que também influenciam diretamente no adoecimento corporal (Kovács, 2003).
Outro pai apresentou sintomas de sofrimento crônico após a terceira perda reprodutiva consecutiva, uma reação de uma grande perda. Considerando o sofrimento desse pai, dois aspectos importantes emergem: o primeiro é a figura do envolvimento afetivo, efetivo e emocional total do homem com as gestações de sua esposa e, como consequência, uma dor contínua e crescente que se acentua a ponto de se tornar sofrimento crônico. Além disso, se assumirmos que, na última gestação, este pai insistiu para os médicos que ele queria uma cesariana precoce (porque ele teve um resultado positivo na primeira gravidez de sua esposa, sua filha de sete anos de idade), então a segunda seria a negligência médica de não considerar a voz do pai, a história de sofrimento deste homem e sua família. Tocamos aqui na hegemonia da medicina que tende fortemente a negar a subjetividade e o contexto vital do paciente. Tais aspectos devem ser considerados como parte integrante do cuidado.
8 – Conclusão
Este estudo antropológico acrescenta conhecimento da experiência significativa dos pais que sofreram morte e luto gestacional. Esses homens estão inseridos em um contexto marcado pela desigualdade e pela injustiça social, onde o Estado não oferece suporte econômico como esferas básicas de subsistência na educação, saúde e moradia.
É a experiência do sofrimento em situações socialmente caóticas que revela possibilidades surpreendentes de superar a dor avassaladora no momento da perda de uma criança. Tais possibilidades são, frequentemente, desconsideradas pela visão biomédica.
A dor desses pais, marcados por uma realidade de corrupção política e degradação econômica, vai além da esfera pessoal e se estende a outra, a social. A perda reprodutiva é mais uma perda crônica que se acumula na vida frágil daquelas pessoas, tão desprovidas de direitos e dignidade.
A carga emocional, o sentimento de desamparo e a indignação da indiferença hospitalar trazem uma profunda agressão moral àqueles homens que já carregam uma autoimagem tão negativa. Em contraste, pode-se ver o caráter determinado, sensível, cuidadoso e criativo desses pais que insistem em salvaguardar e ressignificar o relacionamento com seu filho por toda a eternidade.
Os resultados questionam a lógica do cuidado centrado na hegemonia médica e aponta para a necessidade de um processo multidisciplinar, aberto à escuta e ao diálogo com o paciente e sua família. Isso exige que tanto a instituição de saúde quanto seus profissionais estejam atentos às relações interpessoais com os pacientes, bem como possam ser sensíveis ao impacto do ambiente hospitalar na realidade da dor vivenciada em diferentes níveis pelos pacientes e suas famílias.
A subjetividade dos sentimentos produzidos pela perda gestacional e as representações êmicas do luto exigem um maior esforço dos profissionais de saúde para que possam ir além das intervenções cirúrgicas no momento do parto e enfrentar o sofrimento de seus pacientes. O conflito da dor e da vulnerabilidade paterna causada pela perda gestacional demanda uma política de cultura e humanização do cuidado.
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