
Editoral – Renovação e Continuidade
António Jácomo
Vice-Presidente e Diretor de Publicações do Centro de Estudos de Bioética
Diz-se que, ao atingir cerca de quarenta anos, a águia enfrenta um processo doloroso de reconstrução, durante o qual substitui o bico, as garras e as penas envelhecidas, preparando-se assim para prolongar a sua vida e recuperar a capacidade de voar. Esta narrativa simbólica convida-nos a refletir sobre a importância de parar, reavaliar e transformar — um exercício essencial também no domínio da ciência e da reflexão ética.
A Revista Portuguesa de Bioética partilha este mesmo espírito de renovação e continuidade. Desde a sua fundação, tem procurado afirmar-se como um espaço de reflexão interdisciplinar e crítica sobre as questões éticas que emergem da vida, da saúde, da ciência e da tecnologia. Editada pelo Centro de Estudos de Bioética (CEB), a revista constitui um fórum privilegiado de diálogo entre as ciências biomédicas, o direito, a filosofia, as ciências sociais e humanas, promovendo o encontro de saberes e o aprofundamento do debate académico em língua portuguesa.
Com esta nova edição, a revista inaugura uma etapa significativa da sua trajetória — a plena transição para o ambiente digital. Esta mudança representa mais do que um avanço tecnológico: é um compromisso renovado com a acessibilidade, a sustentabilidade e a difusão global do pensamento bioético, assegurando que o diálogo ético continue vivo, dinâmico e próximo das realidades contemporâneas.
Os textos reunidos nesta edição refletem a diversidade e a profundidade das problemáticas que marcam o campo da bioética contemporânea.
A edição abre com uma nota de reflexão de Carlos Costa Gomes, que contextualiza os desafios atuais da ética aplicada e da investigação científica. Segue-se um estudo de Márcia de Cássia Cassimiro, que analisa as estruturas de governança e as boas práticas de integridade científica no espaço europeu, sublinhando a importância de políticas de transparência e responsabilidade na produção do conhecimento.
A questão da inteligência artificial surge como tema transversal em vários contributos: Andra Cumpana, Professor Auxiliar/Investigador Sénior (TOXRUN – Toxicology Research Unit, University Institute of Health Sciences, CESPU; ORCID: 0000-0002-5418-3362), Barbara Ribeiro, Daniela Freitas, Filipa Batista, Lucas Sousa e Carlos Gomes exploram o impacto da IA na fisiologia clínica, propondo uma reflexão sobre a integração tecnológica em contextos de saúde; enquanto Thierry Chozem Zamboni Kotinda discute a necessária revisão do ensino jurídico brasileiro perante a realidade emergente das inteligências artificiais generativas.
Num registo internacional, Sheila Torquato Humphreys aborda as interfaces cérebro-computador no contexto da exploração espacial, analisando as suas vantagens tecnológicas e as implicações ético-jurídicas dessa nova fronteira. A dimensão humana e educativa surge com destaque no ensaio de Maria Helena Vieira, que revisita o papel do professor como presença estruturante ao longo de 45 anos de prática pedagógica, sublinhando a ética da escuta e da relação.
No domínio teórico, Miguel Vieira e Maria Teresa Silva desenvolvem o conceito de Agenoética, propondo uma reflexão sobre a ética da agência, enquanto Ana Elisabete Ferreira examina a relação entre neurotecnologia, bioética e direito, centrando-se nos princípios de beneficência, congruência e verdade.
A espiritualidade e a dimensão humana do cuidado estão presentes no artigo de Carmen Carvalho e António Jácomo, que exploram a dimensão espiritual nas unidades de cuidados intensivos neonatais a partir de uma perspetiva bioética. O mesmo autor assina ainda um texto sobre educação e formação ética como instrumentos de transformação social, destacando o papel da ética como prática viva e pedagógica.
O compromisso com a justiça e a dignidade humanas é retomado por João Paulo Barbosa de Melo, que discute políticas públicas orientadas para a redução das desigualdades e a promoção da justiça social. Inês Quadros revisita, por sua vez, o conceito de Dignitas Infinita, refletindo sobre as violações da integridade da pessoa humana, enquanto Luís Manuel Pereira da Silva encerra a edição com uma análise provocadora sobre o relativismo moral e a possibilidade da amoralidade no pensamento contemporâneo.
A Direção da revista expressa o seu reconhecimento a toda a equipa editorial, bem como aos autores e revisores que tornam possível esta edição, reforçando o compromisso da revista com a excelência científica e o diálogo interdisciplinar.
A renovação, entendida como processo contínuo de reflexão e adaptação, é também o motor da bioética. Tal como a águia que, ao renascer, recupera o impulso para voar mais alto, também a reflexão bioética se revitaliza a cada debate, a cada investigação e a cada nova geração de pensadores comprometidos com a dignidade humana, a responsabilidade científica e o futuro da vida.
Editorial – António Jácomo – RPB 29 (PDF)


