Aspectos éticos e bioéticos no tratamento da dor na criança
Prof. Doutor Filipe Almeida
A todos os meus cumprimentos muito cordiais e a expressão do meu elevado gosto em participar nesta mesa que se quer ocupar das responsabilidades de todos nós, individuais e colectivas, no tratamento da dor da criança.
Para um pediatra que cursou há já 4 décadas a Faculdade de Medicina, a especialização em pediatria e a subespecialização em cuidados intensivos pediátricos, participar neste dia mundial da criança numa mesa sobre “o tratamento da dor da criança” continua a ser, paradoxalmente ou talvez não, um enorme desafio. No início do meu internato da especialidade, integrei o grupo de trabalho HUSAC (Humanização dos Serviços de Atendimento à Criança) promovido pelo Instituto de Apoio à Criança, dinamizando no Serviço de Pediatria do então Hospital de S. João actividades que visavam a humanização das práticas aí implementadas, e recordo o esforço que se iniciava para implementação da Carta da Criança Hospitalizada, elaborada em 1884, cujo ponto 5 enunciava especificamente “Deve evitar-se qualquer exame ou tratamento que não seja indispensável. As agressões físicas ou emocionais e a dor devem ser reduzidas ao mínimo”.
No final dos anos 90, a Direção-Geral da Saúde (DGS) reconheceu a necessidade de melhorar a abordagem da dor em Portugal, para o que, em cooperação com a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) elaborou o primeiro documento estratégico, o Plano Nacional de Luta Contra a Dor (PNLCD), que viria a ser aprovado por despacho ministerial em 26 de março de 2001.
Em junho de 2003, a Direcção-Geral da Saúde, para reforçar a importância da avaliação da dor em contexto assistencial, colocou a dor no patamar dos sinais vitais, por definição, obrigatórios de avaliar sistematicamente, reconhecendo-o, embora erradamente na sua enumeração, como o “5º sinal vital” (na verdade, trata-se do 6º sinal vital, associado que foi aos frequência cardíaca, frequência respiratória, tensão arterial, temperatura e estado de consciência).
Num percurso que não nos cansaremos de percorrer, continuamos, sem dúvida, na necessidade de exigir o tratamento da dor e, de forma indissociável, a sua prevenção na prática médica, como dever e responsabilização indeclinável.
Exigência acrescida, sobremaneira, quando o sujeito humano atingido pela dor pode ser ferido com o desrespeito pela sua vulnerabilidade, carecido que está de afirmar a sua vontade, como o são as crianças.
Mas uma exigência dura porque aqui, hoje, tentamos fazer um exercício de impossibilidade: adentrarmo-nos na experiência da dor humana de cada outro, sempre pessoal, única, intimista na sua compreensão.
Do que nos é pedido para falar? A dor!
Sendo certamente um dos conceitos clínicos mais difíceis para a comunidade científica descrever com objetividade, uma definição é consensual no meio clínico: é “uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada ao dano tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de tais danos”. É sempre uma sensação negativa, mas nunca foi tarefa fácil caracterizá-la devidamente.
Porém, para a questão magna “o que é a dor?”, a mais radical das respostas é certamente a de uma criança: dor é o que dói. Sim, e eu subscrevo, dor é o que dói! Mas a dor é também mais que um dói-dói!
Não irei deter-me na complexidade que é definir a dor, na materialidade neurológica e bioquímica da sua natureza. A proposta maior deste Colóquio gravita não especialmente em torno da dor, mas em volta do diálogo com a dor, isto é, atira-nos para o diálogo com o ser humano dorido, concretamente no seu tempo de ser criança.
Daniel Serrão, numa das suas tão provocadoras intervenções, lembrava-nos que “somos, todos, pessoas. Mas. ser doente faz-nos ser mais pessoas que todas as outras pessoas”.
E, numa toada idêntica, Dostoiévski avisava: “Não me ajoelhei diante de ti, mas diante de toda a dor humana”.
Quatro séculos antes de Cristo, Hipócrates sublinhava a missão superior do médico quando pregoava “é divino sedar a dor”. E, no século XVI, Francisco Nunes inscrevia, numa carta de preceitos médicos, “entre todos os sintomas, dê o médico primazia ao alívio da dor”.
A dor emerge, caros amigos, como uma forte realidade que preenche a nossa condição humana e que, por tal, nos pede exigente atenção. E os médicos têm aqui um papel singular. É a eles que se dirigem maioritária e prioritariamente quantos experimentam a dor, com a peculiaridade de uma intermediação maternal em pediatria. Sim, em pediatria (e talvez não só em pediatria!) o primeiro grito que se lança quando algo dói é Oh mãe!, o que torna desde logo esta particular mulher-mãe um ventre terapêutico, não farmacológica mas humanamente modulador da intensidade da dor.
Apesar de redundante, vale a pena reiterar sem cansaço: a dor existe. É o sintoma mais antigo da história da Medicina e o seu alívio um dos seus terapêuticos pontos cardinais.
Apesar da sua imaterialidade, podemos compará-la, respigando o Professor Doutor Ribeiro da Silva, “à chama que se acende e se apaga, não ocupando espaço, mas desgastando e consumindo a matéria combustível”.
Sim, a dor existe e existe no ser humano desde os primórdios do seu desenvolvimento. As vias anatómicas e neuro-químicas começam a formar-se na vida intrauterina e pelas 28 semanas de gestação já estão formadas. Sabemos bem que as vias de controlo descendentes inibitórias da dor ainda não estão totalmente formadas nos prematuros o que, por tal, acarreta certamente uma hipersensibilidade aos estímulos dolorosos. No sistema nervoso imaturo de crianças, a combinação de campos receptivos aumentados, menor capacidade discriminatória para estímulos sensoriais e vias inibitórias imaturas resulta em maior percepção de dor frente a estímulos nocivos, e não menor, como se acreditava anteriormente.
Sim, nós médicos, acreditámos até há bem poucos anos, há menos de um século, que os recém-nascidos – sobretudo os bebés prematuros – não sentiam dor ou, caso sentissem, não se iriam lembrar. É da nossa história recente a sujeição de bebés a procedimentos cirúrgicos, recebendo um relaxante muscular para não comprometer o êxito cirúrgico, mas sem qualquer analgésico. Numa presunção científica, os comportamentos “estranhos” que os bebés exibiam durante a agressão cirúrgica, eram não mais que mera actividade reflexa…
Iniciei o meu internato de pediatria nos anos 80. Numa manhã de urgência, acompanhei uma criança de 5 anos com uma fractura do fémur direito à sala de Ortopedia para que se lhe colocasse uma tracção com pesos aos pés da cama. Era necessário perfurar a tíbia para lhe traccionar o membro inferior e conseguir a recolocação anatómica das extremidades desalinhadas do fémur. O ortopedista, na sua diligente intervenção cirúrgica, aprontava-se já para esta perfuração a cru, com uma “black and decker”. Perguntei-lhe se tinha intensões de o fazer sem analgesia, ao que me respondeu com inquestionável certeza: só dói a atravessar a pele e o periósseo da tíbia, pelo que é desnecessário, por desproporcional, fazer a analgesia profilática!… O minúsculo interno conseguiu, não sem um sorriso depreciativo do mestre, que se fizesse a indispensável analgesia. Recordo o sorriso, agora sentido e agradecido, da enfermeira que acompanhava, quando analgesiava a Maria. No termo desta pequena grande história, já a enfermeira se retirava com a Maria, aquele colega ortopedista chamou-me ao lado, para me chamar à atenção por eu não ter repreendido a enfermeira quando, sorrida porque agradecida, aprovou a minha intervenção e, a contrário, reprovou a sua “experiência acumulada” no tratamento das fracturas ósseas nas crianças… E concluiu, você é novo, não pode tratar assim bem as enfermeiras… Trago-vos esta história, para nos lembrarmos de tantas outras formas de dor no nosso quotidiano profissional!
Mas voltemos à dor destoutras Marias.
As crianças sentem dor e guardam memória da dor. Sabe-se, atualmente, que a dor não tratada pode ter consequências na vida da criança a curto e a longo prazo. Uma dor insuficientemente tratada prolonga, como sabemos, por exemplo o tempo de recuperação das cirurgias. Há evidências de que a dor não tratada de forma eficaz e adequada pode ter efeitos nefastos a longo prazo, não só no que concerne à sensibilidade dolorosa, como ao funcionamento do sistema imunológico, à neurofisiologia, ao desenvolvimento de dor crónica na vida adulta, à forma de lidar com o stress e ao comportamento aquando dos cuidados em saúde.
Por não ser apenas um sintoma, mas um fenómeno complexo que envolve emoções e vivências culturais, a dor deve ser encarada segundo um modelo biopsicossocial. Olhamos assim para uma “dor global”, que nos coloca atentos muito para além da sua expressão física.
E em pediatria, quantas são as formas de violentas dores humanas que se abatem sobre as crianças, que exigem procedimentos anamnésticos, diagnósticos, interventivos, para prevenir e tratar a dor em tantas das suas expressões mais ou menos objectivas?
Importa, talvez, separarmos agora as águas. A dor física, aguda ou crónica e a dor humana, a que arrasta inevitavelmente consigo o sofrimento humano.
Para a dor física, é essencial que profissionais da saúde envolvidos na assistência pediátrica, sejam efectiva e eficazmente treinados (diria, mesmo, e avaliados) para reconhecer, avaliar e tratar a dor, seja ela aguda ou crónica, na esteira da sua variabilidade fisiológica e psicológica ao longo das diferentes etapas do desenvolvimento da criança.
Curiosamente, a este repto de atenção diagnóstica e terapêutica à dor, que mobilizou importante investigação científica, decifrando-lhe a natureza e os mecanismos que lhe subjazem, e alocando-lhe uma vasta farmacopeia, não correspondeu uma vigorosa e sistemática intervenção terapêutica, apesar das poderosas ferramentas disponíveis não só para o tratamento como para a avaliação da intensidade da dor (das múltiplas escalas à atenção aos sinais vitais, que tão directamente expressam a intensidade da dor em crianças), tarefa primordial para intervenção eficaz.
E, apesar de no último quartel do século XX, o desafio ser “não à dor no século XXI”, continuamos talvez envergonhados com um cenário pouco abonatório de uma medicina de vanguarda em tantas áreas da sua intervenção e que, neste domínio, não se impõe de forma competente.
E não poderemos suportar esta realidade na ignorância médica, certamente, mas numa prática inadequada de subdiagnóstico, subavaliação, subprevenção e subtratamento da dor e num tão incompreensível quanto teimoso preconceito de perigosidade dos analgésicos.
Por tal, na transição para este nosso milénio, inscreveu-se a dor como o 5º sinal vital (na realidade o 6º, como atrás enunciado) a monitorizar: depois do nível de consciência, da frequência cardíaca, da frequência respiratória, da pressão arterial e da temperatura corporal, impõe-se aos profissionais de saúde não apenas rastrear a existência de dor, mas, nas suas rotinas assistenciais, fazer a sua medição objectiva. Para que se não esqueça, para que se lhe responda eficazmente.
Mas, que resposta é por nós devida à dor do nosso doente?
A dor física é um radar biológico absolutamente necessário á vida. Como detector do perigo, é um sintoma precioso. A sua existência é vital para a vida humana, pelo que não é aceitável, assim, desejarmos eliminar a dor. É, pois, um alarme imprescindível, mas apenas valioso enquanto tal. Depois de soado, este alarme tem de ser desligado. A sua manutenção mórbida desmerece-o como tal. É-nos intolerável, como bem o sabemos, ouvir incessantemente o alarme da casa ou do automóvel que se não desliga. Assim é também insuportável este alarme que é a dor física do humano, se se não interrompe com oportunidade. Não apenas pelo ruído que causa, mas pelo cerco que a sua persistência faz à Vida: sob a dor, a consciência pessoal é amordaçada, a liberdade individual silenciada, o “eu”, que me personaliza, anulado. Para que se não fracture mais a vida, há, pois, que matar esta dor que, neste modo temporal de existir, se torna afinal abjecta. Um matar que significa tratar veementemente, numa indeclinável exigência ética do nosso afã profissional. Não matar esta dor é abrir portas a que a dor severa possa matar o próprio viver, transformando-nos, a nós profissionais de saúde, em agentes eutanasiantes, ao deixar os nossos doentes mergulhados no desespero.
Esta é a minha leitura da dor física, aguda ou crónica, que reclama enérgica terapia médica, em distintos patamares: farmacológico e não farmacológico. Para aquele, dispomos de uma ampla farmacopeia, da qual conhecemos perfis farmacocinéticos e farmacodinâmicos que nos concedem segurança na sua utilização pediátrica, deste a própria prematuridade nos neonatos.
Nas medidas não farmacológicas, dispomos de intervenções físicas e psicológicas, onde releva:
• O contacto físico (o COLO, materno e paterno, digamo-lo com letras maiúsculas!);
• A proximidade (sabemos bem o agravamento clínico das crianças internadas quando, tempos idos, os pais eram obrigados a abandonar os filhos por não lhes ser permitida a presença contínua, nomeadamente durante a noite, nas instalações hospitalares…), com gastos acrescidos para controlo sintomático durante a noite (temo que tenham sido razões economicistas que ajudaram a reverter as medidas políticas de permissão da presença dos pais junto dos filhos a tempo inteiro, diminuindo assim os gastos…);
• A sucção não nutritiva ou a sacarose (para os mais pequeninos);
• A distração, para estímulos alternativos mais agradáveis (porque não o recurso cirúrgico às ferramentas digitais, de tanto agrado das crianças!);
• A música;
• As narrativas de histórias infantis;
• A necessária informação aos pais, e às próprias crianças se tiverem maturidade ajustada, sobre os procedimentos a efectuar;
• As técnicas de relaxamento.
Porém, não esqueçamos a importância radical da prevenção da dor em pediatria, aliás em qualquer etapa da vida.
É imperativo que nos organizemos de forma robusta para prevenir e minimizar a dor, desde logo nas unidades hospitalares, atendendo nomeadamente a:
• Redução da incidência de luz e do nível de ruídos;
• Concentração de procedimentos e recurso a cateteres centrais sempre que possível, numa mais adequada gestão, visando intervenção mínima e permitindo períodos de descanso alargados;
• Promover activamente, não passivamente, o contato com os pais ;
• Ministrar sem peias analgesia profilática para procedimentos invasivos que sabemos, de antemão, serem dolorosos.
Mas, e a dor humana?
A dor não compaginável nas escalas de avaliação disponíveis?
A dor sofrida, assim vertida no teatro do sofrimento?
Já no século passado, Dr Carl van Bayer nos lembrava, que “Avaliar a dor apenas pela sua intensidade é como ´descrever a música unicamente pelo seu volume”
O sofrimento expõe-nos a vulnerabilidade humana que nos constitui, destrói o mito da saúde total e coloca-nos afinal perante a questão fundamental de saber “qual o sentido da dor, do mal e da morte que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir?”, como nos sugere o documento conciliar do Vaticano II Gaudium et Spes, ou ainda, de saber não “o que é o Homem?”, mas, como tão cristalinamente nos provoca Walter Osswald, “quem é o Homem?”
No seu percurso vital, o ser humano chega, o ser humano está, o ser humano parte!
• O ser humano chega, dorido pela travessia de um canal de parto opressivo – estranho salvo-conduto para poder fazer a experiência da liberdade!
• O ser humano está, caminheiro da história que faz!
• O ser humano parte, quantas vezes ferido pela negação de uma medicina paliativa, quantas vezes vexado por uma obstinação terapêutica obscena, e, no tempo que chega, quantas vezes sujeito a ser escandalosamente matado para que se mate a sua própria dor!
É assim a vida do homem que, na sua inteireza, atravessa o tempo:
• Um trajecto de intensidades, que carrega paradoxalmente (e talvez não!) alegrias e dores, venturas e sofrimentos, paixões e desamores, encantos e despeitos;
• Uma viagem de totalidade, que encerra em si mesmo o viver e o morrer, porque só nesta abrangência consegue ser quem é;
• Um trilho de plenitude, porque no seu próprio viver acolhe o absoluto morrer, porque no seu próprio morrer assume o seu inteiro viver.
Está assim, o Homem, apto a conhecer a abrangência da dor física, da dor mental, social, moral e espiritual, dor cunhada por Cicely Saunders como dor total.
Dor total que reclama uma resposta que alia conhecimento técnico-científico e competência humana, num exercício de um cuidado humanizado.
Deixem-me recordar-vos:
Em maio de 2012, o Tribunal de Sintra, em resposta a uma intervenção social, decidiu retirar os sete filhos menores a Liliana Melo, alegando que a mãe não tinha condições económicas para os sustentar ou educar. Não havia, no entanto, qualquer referência a maus-tratos. O caso causou polémica porque a cabo-verdiana, que tinha mais três filhos, foi pressionada para laquear as trompas, algo que sempre recusou.
O STJ disse em 2015 que não existiam ilegalidades nas decisões proferidas pelo Tribunal de Sintra e contrariou a possibilidade de visitas de Liliana Melo aos filhos, por ser “incompatível” com aretirada das crianças para adoção.
De acordo com o Tribunal de Sintra, ao longo dos anos foram impostas várias condições a Liliana Melo, como vacinar os filhos, manter condições de habitabilidade, prover o sustento das crianças, e fazer uma laqueação de trompas.
Expresso (2016.02.16):
Tribunal europeu dá razão à mãe a quem o Estado português retirou 7 filhos
Em 2016, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem viria a condenar o Estado português por violação dos Direitos Humanos no caso desta cabo-verdiana. A mãe, que viu os tribunais portugueses retirarem-lhe os sete filhos e que tem perdido os recursos na Justiça em Lisboa, viu agora o tribunal europeu dar-lhe razão, ao qual se queixou pela proibição de contactos com as crianças que lhe foi imposta durante a pendência do processo.
Teria dificuldade em ilustrar de forma mais veemente a dor humana destas crianças apartadas da sua mãe, em nome de um pretensamente justo desígnio de protecção infantil que, agora sim, inflige maus tratos, violência e dor afectiva…
E quantas telas conheceremos todos que pintam a dor brutal que se abate sobre as crianças nos processos de separação parental que não acautelam, como lhes deveria ser previsto, a minimização do sofrimento, na procura do seu bem superior… tão eufemisticamente evocado nas extraordinárias Declarações de valor universal!
Caros amigos,
Só os poetas conseguem transformar a dor num poema. Não são eles que conseguem “fingir tão completamente a dor, que chegam a fingir que é dor, a dor que deveras sentem”? Precisaremos deles, sim, para conseguirmos decifrar este misterioso puzzle que inscreve nas vivências da dor o prazer sentido por alguns, o amor experimentado por outros, o desespero habitado por tantos, noutros ainda a redenção realizada.
A dor total de um doente apela a uma resposta terapêutica no horizonte da amizade, que recusa, por isso, desencontros gerados nos corredores habitados por estranhos morais.
A medicina não dispõe de oração nem de fé no seu arsenal terapêutico. Mas a medicina abre portas para que a esperança possa acontecer nos pátios do desespero e do sofrimento.
Na verdade, e como observa Cicely Saunders, “o sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida”.
E a bioética lembra-nos a identidade dos mais vulneráveis dos humanos: “os mais ameaçados no respeito devido à sua autonomia, á sua dignidade, á sua integridade!
Para este Outro vulnerável, que sofre e/ou tem dor, não me é permitido ser indiferente. Por ele, vaticina Lévinas, sou responsável, inteiramente responsável!
E não poderíamos ter melhor apelo à novidade deste novo e singular olhar que devemos aos nossos doentes, do que o que nos é lançado pelo corpo que, sustentando a dor humana, nos recorda de forma solene a sua exacta vulnerabilidade: a noção de que toda a vida pode ser ofendida, vexada e ferida de morte.
Compreender a vulnerabilidade do homem é aceitar a recusa da busca do ser humano perfeito, é saber recusar o elixir da imortalidade. Porque respeitar a vulnerabilidade é reconhecer a finitude da vida e particularmente a verdade do sofrimento dos seres humanos. Só neste contexto poderemos, sim, fintar a dor, caros amigos!
E não haverá maior nem melhor escola para nos sabermos situar junto do homem doente do que a que nos torna conscientes da sua fragilidade. Porque a comunicação que se impõe acontecer não pode escamotear o sentido da compaixão, a disponibilidade para a protecção, o cumprimento de uma atenção desmesurada que só a vulnerabilidade nos fará compreender.


