Um olhar ético sobre a dor: Quando a dor traz más notícias e dói até ao fim
Dra. Isabel Galriça Neto
Resumo
Qual importância da relação entre aspectos da comunicação, dor e ética; sobre imprecisões graves no conceito de Cuidados Paliativos e de como prejudicam os doentes; sobre objectivos de cuidados e correctos padrões de cuidados em fim de vida; e por fim, sobre a boa avaliação e tratamento da dor, e algumas más práticas a evitar. São os pontos de partida para a reflexão.
Palavras-chave: Cuidados Paliativos; comunicação; dor, ética.
Abstract
What is the importance of the relationship between aspects of communication, pain and ethics; about serious inaccuracies in the concept of Palliative Care and how it harms patients; about goals of care and correct standards of end-of-life care; and finally, on good pain assessment and treatment, and some bad practices to avoid. They are the starting points for reflection.
Keywords: Palliative Care; communication; pain; ethics
1 – Introdução
A partir do impulso dado pelo mote deste simpósio, desafiada pelo título que me entregaram e sustentanda pela minha convicção da imprescindível necessidade da prática dos Cuidados Paliativos integrar uma sólida perspectiva ética, surgiram estas intersecções e reflexões que aqui partilho convosco. Mais de que um texto exaustivo sobre matéria tão desafiante quanto complexa, o que aqui pretendo deixar são pistas de reflexão – que se poderão aprofundar, nomeadamente através da bibliografia alusiva que anexo -, tópicos e alertas que me parecem pertinentes. Espero que possam ser úteis e motivadoras de práticas correctas com os doentes em fim vida, eticamente enquadradas e promotoras de maior qualidade assistencial, o fim maior de todo o nosso serviço às pessoas doentes.
Assim, falaremos brevemente sobre legações entre aspectos da comunicação, dor e ética; sobre imprecisões graves no conceito de Cuidados Paliativos e de como prejudicam os doentes; sobre objectivos de cuidados e correctos padrões de cuidados em fim de vida; e por fim, sobre a boa avaliação e tratamento da dor, e algumas más práticas a evitar.
2 – Um primeiro tópico então, as questões de comunicação na prática clínica.
A transição para Cuidados Paliativos, a dor que lhe poderá estar subjacente, envolve transmitir más noticias. E será que fazê-lo é ou não uma perícia técnica, uma competência ética e clínica que se exige aos profissionais de saúde?
Transmitir noticias que alteram a perspectiva positiva de uma pessoa, neste caso o doente, pressupõe conhecer um protocolo específico para o fazer – sugere-se aqui o recurso ao protocolo de Buckman, conhecido pelo acrónimo SPIKES. Existe evidência de que a comunicação inadequada e desajustada pode causar maior sofrimento, ser mais iatrogénica, que muitos tratamentos ou intervenções em saúde. Não se trata de dizer que aprendemos com a prática – ainda mais se não precedida da devida preparação – ou que é “uma questão de bom senso”. Não se pretende certamente contribuir para aumentar o sofrimento, a dor do paciente, e como tal, é fundamental sublinhar a relevância do treino efectivo em comunicação para ganhar competências que definirão, passo a redundância, o profissional competente, humanista. Sem qualidade relacional não haverá competência técnica e boa qualidade assistêncial. E a competência relacional é uma competência técnica, não mera questão de bom senso. Reafirmo com veemência que temos todos de integrar o conceito de que, se não se manejar com mestria a ferramenta terapêutica que a relação médico-doente (ou com outro profissional) constitui, não se pode ser considerado um bom profissional de saúde. Não se trata de ser dotado para isso, de se ter jeito ou não; trata-se de estudar, treinar em ambientes controlados, antecipar cenários clínicos, discutir com pares e treinar respostas. É assim, com estudo e treino progressivo, tal como na aquisição de outras competências técnicas, que se poderá gerar mais empatia, melhor adesão às medidas propostas, e reduzir consequências nefastas para o doente. Referir-se à transição para Cuidados Paliativos como “não havendo mais nada a fazer”, “não tendo mais nada para oferecer ao doente”, como sendo “um baixar de braços”, uma desistência ou um “atirar da toalha ao chão”, são exemplos de má comunicação, da tal iatrogenia na comunicação que pretendemos evitar, quer por ser falso e doloroso, quer porque não é ético. Existem formas mais adequadas de mostrar ao doente o nosso compromisso de não-abandono, quer ele se cure ou não, expressando isso mesmo ao dizer que, apesar de não o podermos curar, iremos fazer tudo que lhe possa oferecer mais conforto e qualidade de vida, fazer o que estiver ao nosso alcance para ter os sintomas controlados e o menor sofrimento físico, nunca deixando que ele se torne disruptivo, enfim, manter uma aliança terapêutica em que damos o nosso melhor para “o ajudar a ajudar-se”.
3 – Ética e doente em fim de vida
E passemos a outro tema relevante em matéria de ética e doente em fim de vida, que diz respeito a várias clarificações em torno do conceito de Cuidados Paliativos e ao processo de decisão e padrão de cuidados que lhe deve estar associado.
Como sabemos, e de acordo com a definição consensual da OMS, os doentes paliativos podem ser incuráveis – não todos -, mas seguramente não são “intratáveis”. Para que isso aconteça plenamente e com eficácia, é preciso fazer algumas clarificações sobre o conceito já que, na prática de todos os dias, essas imprecisões têm como consequência a falta de acesso de doentes com necessidades paliativas aos cuidados de saúde a que devem ter direito. E isso não é nem correcto ou justo, muito menos ético.
As necessidades paliativas decorrem do reconhecimento de um doente estar em sofrimento determinado por uma doença grave (não necessariamente incurável) e/ou incurável, avançada e progressiva, independentemente do prognóstico expectável, que pode ser de anos, meses ou semanas. Para receber Cuidados Paliativos um doente não tem que ser necessáriamente um doente terminal (prognóstico expectavel de meses/semanas) e organismos internacionais e nacionais recomendam que a referenciação se faça mais cedo do que tarde. Quer-se com isto dizer que, se a referenciação for tardia – como infelizmente tantas vezes continua a verficiar-se – o doente terá falta da assistencia adequada, terá sofrimento desnecessário, ele e os seus familiares, uma dor que é tratável e evitável. Isto também não é correcto ou justo, muito menos ético. Além do mais, existe evidência robusta de que o tratamento paliativo, que é um tipo de tratamento activo, dirigido ao conforto, não encurta a vida do paciente, antes pelo contrário, e oferece maior qualidade de vida e melhor controlo sintomático.
Esta é uma mudança que deve acontecer, sob pena de termos doentes privados dos cuidados que carecem e em sofrimento, ainda mais evitável. E ela depende, e muito, das acções dos profissionais de saúde.
Este reconhecimento da situação de incurabilidade e de fim de vida – últimos 12 meses de vida – implica obrigatoriamente assumir um modelo de decisão e acção em que os objectivos de cuidados são revistos – dando ênfase ao objectivo de proporcionar conforto, beneficios, sem agravar ou promover malefícios –, sublinhando a proporcionalidade de meios terapêuticos e diagnósticos a usar nesta fase da doença. São modelos e padrões de cuidados bem distintos dos aplicados nas fases de doença aguda, em que a reversibilidade das patologias de base é realista e expectável.
Ainda são muitos os médicos que julgam que a sua obrigação é manter este tipo de doentes vivos a qualquer custo, e com isso impõem-lhes maleficios, tratamentos fúteis e agravamento do seu sofrimento, sem que com isso revertam o processo de base que é notoriamente irreversivel. São situações de obstinação terapêutica, como a investigação bem demonstra, seja no nosso país como no estrangeiro. São frequentes as situações que tipificam más práticas, com agressividade em fim de vida e recurso a meios desproporcionados no contexto de incurabilidade e prognóstico reservado – admissão em cuidados intensivos, realização de cirurgias, realização de quimioterapias ou de diálise, exames de imagem e culturas em excesso, recurso a terapêuticas desnecessárias, num padrão de cuidados bem descrito e conhecido. Esta obstinação terapêutica é condenável, deve ser evitada, e uma vez mais uma sólida formação ético-clínica é exigida aos diferentes profissionais de saúde no processo de decisão.
4 – A dor e a ética
No que à dor e ética ainda diz respeito, – um terceiro tópico neste meu curto escrito – convirá lembrar que nesta fase de doença avançada e incurável existe o equívoco de que a dor é o sintoma mais frequente, o que não é real – isso dependerá da patologia, oncológica ou não oncológica, mas habitualmente é a astenia e a anorexia que ocupam esse lugar. Nem a dor é o mais frequente nas várias patologias que implicam incurabilidade, nem o sofrimento destes doentes apenas é determinado pelas questões orgânicas. O que se preconiza é uma abordagem das várias dimensões do sofrimento do doente, sem nunca descurar as questões da busca de sentido, da espiritualidade e da dimensão psico-emocional. Se o controlo sintomático, nomeadamente da dor, da dispneia, do delirium ou das náuseas e vómitos, é imprescindível e uma prioridade, o certo é que as matérias de relevância, ainda que não de urgência, não devem ser deixadas para trás. Relevância e premência para o doente são dois eixos que se devem articular e conciliar na hora de deliniar planos de cuidados e as respectivas intervenções. Simultaneamente, não se deve confundir maior fragilidade com existencia de maior sofrimento. Os Cuidados Paliativos garantem que esse eventual sofrimento possa e deva ser tratável.
E se não se tiver bem presente o que atrás dissémos, far-se-á uma deficiente avaliação sintomática e, no caso concreto da dor, leva os mais impreparados e inexperientes a valorizar como dor fisica aquilo que não é mais do que o componente existencial e emocional da mesma, expressado de forma enviesada. É este conceito que foi cunhado por Cicely Saunders como dor total e mais não é do que o sublinhar que a dor que o doente expressa depende de multiplos factores, não apenas dos orgânicos. Aquilo a que tantas vezes assistimos na prática é a doentes erradamente avaliados, medicados e intoxicados com opioides, nomeadamente transdermicos, cuja subida rápida pode implicar grandes incrementos na dose equivalente de morfina oral. Com uma avaliação mais correcta dos factores psico-emocionais – que não se tratam com opioides – e um maior recurso aos fármacos co-adjuvantes, certamente teríamos melhores resultados no controlo álgico deste numeroso grupo de pacientes. Todos os fármacos de que dispomos são úteis e benéficos, se correctamente utilizados, nomeadamente todos os opioides.
Sobretudo na fase de ùltimos dias de vida (agonia) e/ou nos doentes com demencias avançadas, é comum poder surgir gemido, um sintoma com elevado impacto nos cuidadores, familiares e profissionais. Se por falta de experiência e preparação ele fôr mal avaliado pelos profissionais de saúde, é frequentemtne confundido com dor. Isso faz espoletar um conjunto de medidas incorrectas, nomeadamente, o início de perfusões ditas de conforto – uma entidade clínica não cunhada, inexistente na boa literatura científica –, que levam à intoxicação do doente com morfina. Outras vezes, se esse gemido é associado a agitação psicomotora, avança-se apressadamente para a imobilização física agressiva do doente, uma questão envolta em inúmeras interrogações éticas. Este gemido é maioritariamente associado a quadros de delirio, que, após obrigatória exclusão de que o doente tem dor, deve ser tratado adequadamente com neuroléticos e/ou benzodiazepinas, não com opioides. A morfina é aqui desnecessária e inadequada, e esta intervenção, lamentavelmente cada vez mais difundida em enfermarias e serviços de urgência, prefigura má prática e deve ser abandonada. Esta prática nada tem que ver com o recurso, com base em critérios bem conhecidos, à sedação paliativa, intervenção reservada às equipas especialistas de Cuidados Paliativos, e uma prática minoritária nesses contextos. Importa lembrar que a percentagem de recurso à sedação paliativa, ainda que em cifras distintas, ocorre em baixos números e a maioria dos doentes assistidos por equipas competentes não morre sedado.
Ainda em matéria de boas práticas, eticamente enquadradas, no fim e no final de vida, convirá lembrar a necessidade de se realizarem desprescrições de fármacos inúteis e fúteis, e basta lembrar como o recurso a inibidores de bombas de protões, heparinas de baixo peso molecular, estatinas, é comum – mas incorrecto e pouco ético – em doentes em final de vida (últimas semanas/dias de vida).
5 – Conclusão
Do que aqui trouxe, neste enquadramento de Ética, tratamento da dor e Cuidados Paliativos, volto a destacar a necessidade de uma sólida formação ético-clínica nestas matérias e de urgente correcção de más práticas, num processo de mudança que os doentes em sofrimento de nós exigem.
Existe evidencia científica, existe enquadramento internacional – como o recente relatório da comissão Lancet sobre o valor da morte – e nacional – basta lembrar os planos nacionais de Cuidados Paliativos, não cumpridos, e a Lei nº 31/2018, que prevê para as pessoas com doenças graves e em fim de vida, para os seus cuidadores também, direitos sobre como ser cuidado devidamente, assumindo o respeito inquestionável pela proteção na doença e em que não se contempla a execução da morte a pedido. São direitos por concretizar, ainda não acessíveis a dezenas de milhar de portugueses, o que é verdadeiramente perturbador, para dizer o mínimo.
Que essa realidade penosa seja o impulso que nos deve levar, a cada um de nós, a ser parte integrante e activa deste processo de mudança, do processo em que o acesso aos Cuidados Paliativos não aconteça apenas a uma minoria dos portugueses. Os Cuidados Paliativos são cuidados de saúde que devem integrar um sistema de saúde moderno, não são uma mera opção, uma excrecência ou um facultativo.
Precisamos de profissionais preparados que abracem estes caminhos, com ética, rigor e ciência.E isso é uma emergência.
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